Nome*
Email*
(Não será mostrado)
Error Message

  
Tem a certeza que quer eliminar este comentário?SIM Cancelar
Guardar alterações Cancelar
Deixar um comentário
Os comentários estão activos para este voo
Este é o link RSS para os comentários deste voo
Copie e cole no seu leitor de RSS
Traduzir para

Dormimos muito mal nessa primeira noite: o quarto sem o mínimo das comodidades a que estamos habituados, sem lençol (!), sem ar condicionado, sem água quente, sem vidros nas janelas, sem uma tomada onde pudéssemos ligar a extensão eléctrica que tínhamos trazido, com o vento entrando pela janela - de novo, sem vidros -, assobiando toda a noite, com o ladrar constante dos cães na rua, os alarmes dos carros que o ventão, ao abaná-los, fazia tocar, o cantar dos galos que, alinhados com o horário vigente, adiantado em muitas horas ao português, começam a cantar logo depois das 2 da manhã, e, mais do que tudo, o uivar langoroso e irregular do ventão que se fez ouvir toda a diabólica noite conjugaram esforços para que tivéssemos, a Vera e eu, acordado meia dúzia de vezes cada um durante aquela primeira incómoda noite em Araruna.

Acordámos pela última vez às 04:55, cinco minutos antes do despertador tocar...

Banho rápido de água fria, vestir, arrebanhar a tralha e antes das 05:30 estávamos no pequeno-almoço. Ainda não havia pão, que chegou, pela mão do Edvaldo (o dono da pousada onde estávamos) 5 minutos depois, mamão, banana, café e leite com Nescau e uns papo-secos com queijo para levar; estávamos no carro, às 05:45, para ir até à rampa onde chegámos dez minutos depois. Suponho que entre os voadores europeus poucos se possam gabar (?) de terem chegado a uma descolagem a esta hora da madrugada.

O Sol já ia suficientemente alto para fazer aparecer nuvens com bom aspecto, que passavam na esgalha trezentos metros acima da descolagem. A própria descolagem, a 330 metros de altitude e apenas 140m acima da planície à frente, era um monolito de pedra liso. O vento, que estimei entre 25 e 40km/h, estava de SE, um pouco da esquerda na rampa, augurando uma trajectória de voo de cerca de 310º, 20º mais para N que a trajectória ideal que fica abaixo dos 290º.

Na rampa nós os três: o Gilmário, nosso resgate e condutor, a Vera e eu. O Joca tinha dito que também iria cedo mas o "cedo" do Joca, como ele mais tarde confirmou, é muito relativo. O Glauco, que nos tinha emprestado a chave para abrirmos o portão que dá acesso à rampa e que não queria voar nesse dia, também tinha dito que iria por volta das 07:00 ajudar na descolagem.

Começámos a montar a asa - desta vez trouxe a verde, em que ainda não tinha voado desde que viera da fábrica da AIR, de ser arranjada das mazelas provocadas, no Verão passado, por um dust devil em Piedrahita - que estava imaculada, e antes das 07:00 completamente pronta. Enquanto montávamos os "periféricos" - variómetros, Spot, baterias, rádios, máquinas de filmar - e eu arrumava o arnês chegou o Glauco Pinto com o seu motorista e, logo depois, o Joca com o dele.

O Glauco, recordista brasileiro de distância, com um registo XC impressionante de dezanove voos de mais de 200km, onze dos quais de mais de 300, sete de mais de 400 (todos a partir de Tacima), quatro de mais de 500 e um com o recorde de 612km, certamente o piloto que mais quilómetros fez a partir daqui, tinha passado uma boa parte da noite anterior, à frente de um mapa do Nordeste, a explicar o voo ideal e a dar as instruções para que eu pudesse optimizar o voo. Recomendou que esperasse um pouco mais para descolar por volta das 09:00 da manhã, quando o vento "dá uma abrandada" que facilita a descolagem e quando o tecto já subiu para uma altura que facilita a transposição dos primeiros relevos, a fase mais crítica do voo de cross a partir daqui.

Os parapentistas - os melhores do Brasil, de entre os quais o Samuel Nascimento e o Rafael Saladini, dois dos três recordistas de distância com voos de 564km a partir daqui, e a Marcella Uchoa, há três dias a ainda recordista feminina de distância com 410km - faziam-se rebocar por carros com guinchos no tejadilho num campo 3km à frente da descolagem e dois deles já tinham passado a 300m por cima de nós e desaparecido para trás. Outros dois tinham merrecado na direcção de Tacima, à esquerda da descolagem.

Pouco antes das 09:00 horas, quando o ventão afrouxou um pouco e o tecto parecia estar 500m acima da descolagem, vesti o arnês e pedi ajuda para levar a asa para a descolagem. Lá chegado e ao fazer a verificação final, o suporte do variómetro, já velho e em mau estado, dobrou para trás com a força do vento. Tentei remediar a amarração, com pouco sucesso, e perante a pressão dos circundantes e o comando do Joca "vai, Portuga, qui agora tá bão", deixei estar, pus-me em pé, cheirei a condição e pedi que largassem. Fiquei surpreendido por ter de dar uns passos em frente enquanto a asa da direita, mais metida dentro da pedra por o vento estar desse lado, baixou até uma atitude pouco recomendável de um palmo apenas acima do chão, que o sistema de ailerons e um toquezinho meu corrigiram eficazmente para uma descolagem que provocou uma descarga de adrenalina à pobre da Vera, que filmou a ocasião, mas nenhum outro dano.

Voei para a direita, onde a ladeira sobe um pouco mais, tentei voar para a frente e para baixo de um cúmulo bem formado, na direcção de três urubús que enrolavam a térmica dessa nuvem mas baixei muito antes de lá chegar perto. Voltei para a encosta e fui explorar a esquerda da descolagem, também sem sucesso. Entretanto dava voltas à imaginação pensando como é que conseguiria subir até uma altura que me permitisse iniciar o cross se o vento estava tão forte que em duas voltas ficaria à vertical da descolagem... Voltei à direita e, com pouco mais de 10 minutos de voo apanhei uma boa térmica de 3,5m/s que em sete voltas me deixou a 1000m de altitude e 1000m atrás da descolagem, perto do cloudbase. A instrução - é sempre a mesma...- tinha sido de que deveria ir com a nuvem mesmo se não subisse muito e eu - que sou sempre o mesmo...- resolvi fazer diferente e transitar para o monte de trás, uma cordilheira com a mesma altura da descolagem a três quilómetros. Nos dez minutos seguintes, em que me esforcei por endireitar os variómetros tendo acabado por ir com os Flymasters de lado, ao longo da barra, com os pontos cardeais e a direcção do voo apontando 90º para a esquerda, o que me complicou muito o voo, perdi a altitude que trouxe da frente e voltei aos 500m até que, na ponta NE da cordilheira, apanhei outra boa térmica de 4m/s que em dez voltas me levou de novo ao cloudbase a 1500m. Felizmente e ao contrário do que temi antes, as térmicas, fortes, derivavam menos do que a intensidade do vento faria supor. Cheguei a estar dentro da nuvem mas, com os variómetros a apontar de lado, não arrisquei ficar a voar por instrumentos e, para não deixar de ver o chão e a direcção do voo "à vista", rumei a NW para sair da nuvem com o vento nas costas, a uma velocidade chão entre 100 e 120km/h - sem picar. Dez quilómetros depois estava abaixo de 700m e acima dum outro monte que, desta vez, tinha uns campos de aterragem bons a sotavento mas que também não dava sustentação. Bati numa termiquita de 1m/s e derivei nela durante quase 15km até aos 1500m. Enquanto me deixava derivar tive uma queda como nunca tinha tido desde que ando de rígida, com o nariz completamente apontado ao chão, em que tive de fazer a correcção aparentemente anti-natural de picar até a asa recuperar. Respirei fundo e voltei à térmica...

A direcção do voo estava a levar-me para uma zona contra a qual o Glauco me tinha avisado: "cê tem qui passá à ixquerrdá dji Santá Cruiz", senão daí a pouco não haveria aterragens durante muitos quilómetros, só juremal denso. O aspecto era esse mesmo e, ainda por cima, a seguir a Santa Cruz o céu "azulou", como eles dizem quando as nuvens desaparecem. Sem nuvens nem aterragens em frente, rapidamente tomei a decisão de, com 55km de voo e a 1000m de altitude, enrolar descendente para ir aterrar num dos últimos campos decentes que estavam à vista. Com o vento forte de frente a aterragem correu muito bem, com dois passinhos e a asa na mão, a 20 metros de umas árvores que davam boa sombra e alguma protecção do vento. Ao dar a volta à asa para ir pousá-la à sombra descuidei-me, o vento pegou-lhe por trás e catrapuz, virou-se, e eu por cima dela. Fusível partido, porra! Desengatei-me, despi-me e coloquei o arnês à sombra, peguei num dos dois fusíveis sobressalentes que trago sempre e, com a asa virada ao contrário, treinado como estou, troquei o fusível num ápice.

Agarrei então no nariz da asa, orientado ao vento, para a virar apoiando a quilha no chão e, quando o vento lhe pegou, virou-a mais rapidamente que eu consegui segurá-la e... esborrachou-se no chão do outro lado... com o fusível que eu tinha acabado de trocar... partido de novo. F***-se, f***-se, f***-se, c***lhos m'a f***m, f***-se... E tal...

Deixei-me estar mais cinco minutos à sombrinha, a acalmar e a tentar digerir a ironia de ter aterrado impecavelmente e de, mesmo assim, ter f***do dois fusíveis. A minha queridinha arrancou-me destes pensamentos sombrios ao dizer-me pelo rádio que estava a chegar com o Gilmário e que já me viam. Dois minutos depois ali estavam: ajudaram-me a trocar o segundo fusível e a desmontar a asa e fomos para Santa Cruz almoçar uma picanha argentina regada a baldes de Itaipava gelada, a cerveja da região.

Voltámos depois para Araruna. O Joca afinal não chegou a voar e os trapos que descolaram daqui merrecaram todos perto. O Carlos Lopes e o Eusébio, em Patú, fizeram sessenta e picos quilómetros.

O ponto alto da noite foi o jantar num restaurante que sobressaia pela positiva nesta terra simples e mal acabada, com um risoto de carne de sol e castanha que estava de comer e chorar por mais, de novo regado a Itaipava com uma "entrada" de shots de pinga (cachaça) com limão. O secretário da Prefeitura, chamado Fábio Viriato da Câmara, estava a jantar no restaurante com a mulher e meteu-se connosco e com o Joca, que entretanto se nos juntou, discutindo genealogia e com a tradicional conversa de que todo o brasileiro tem um pouco de português o que nele, com um nome assim, era óbvio... Quando soube que eu era o recordista de rígida do Brasil pediu para tirar uma fotografia connosco e garantiu-me que eu iria bater de novo o recorde a partir daqui... Políticos, dizem sempre o que a malta quer ouvir.

A previsão diz que na terça-feira vai dar bom voo. Vamos esperar que sim.

 

Nas fotografias:

1 - Tentando fixar os variómetros;

2 - Antes da descolagem;

3 - A rasar a pedra...;

4 - No ar;

5 - A descolagem vista do ar, mesmo à frente do meu capacete;

6 - No cloudbase;

7 - No cloudbase 2;

8 - Caindo que nem uma pedra, algures no meio do voo;

9 - Preparando a aterragem: aterrei ao lado das árvores à frente do meu indicador esquerdo;

10 - Depois do almoço, em Santa Cruz, com a Santa Rita de Cássia a abençoar o casal e a Vera a parodiar a pose típica da filha Sara e das amigas dela nas fotografias.

 

PortugalRicardo Marques da Costa @ 2019-10-13 20:43:27 GMT Linguagem Traduzir   
Responder