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Como de costume, despertar às 04:30, pequeno-almoço ao nascer do Sol, às 05:00, e subida às 05:30 para estarmos na rampa antes das 06:00: maluquice, quando visto pelos nossos olhos de europeus medianos; horário adequado, pelo padrão nordestino...

Este, 23 de Outubro, era o dia D, em que as previsões permitiam pensar em melhorar as marcas que tínhamos feito anteriormente e para o qual eu, fisicamente combalido e mentalmente impressionado pelas condições e pelo recente acidente do Eusébio, tinha guardado as últimas energias.

Na descolagem o ventão estava provavelmente por volta dos 35 km/h, como previsto. Ainda havia poucas nuvens mas isso não foi impedimento para que o Carlos, o Eduardo e o Emi descolassem antes das 06:20, seguidos - sim, seguidos, porque eles eram, indubitavelmente, os líderes da maralha parapentista - por uma dúzia de outros pilotos.

Eu fui montando a minha asa, procedimento muito mais longo e demorado que aquele que os parapentistas têm de realizar antes de voarem mas que eu já conseguia fazer em menos de uma hora. Mas não estava pressionado pelo tempo, visto que imaginava que não conseguiria fazer outro voo tão demorado como o dos 400 km - mais de nove horas!... - do princípio da expedição, os trapos mantinham-se praticamente parados 200 a 300 m acima da descolagem e pensei que se fosse para voar poucas horas, então o melhor seria aproveitar a condição o mais consistente possível que não é, de todo, a da primeira hora da manhã.

Fui o último a descolar, sem dificuldade, às 07:40. Nessa altura todos os parapentes já tinham passado para trás do monte e o céu estava vazio de voadores. As nuvens já pareciam boas mas ainda apenas 300 m acima da ladeira. Por ali andei durante quase meia hora sem conseguir ultrapassar os 900 m - a descolagem é aos 570 - até que, debaixo de uma nuvem, consegui subir até quase aos 1400 entrando nela, enrolando e derivando com calma. Quando saí da nuvem fui descendo marcadamente e a 10 km da descolagem estava a 700 m ASL, 500 acima do chão, indo na direcção de uma zona de aterragens difíceis ou inexistentes. Pensei que a minha única hipótese era tentar aguentar-me a fazer ladeira num montinho cónico de 200 m de altura, logo a Norte de uma aldeia chamada Rafael Godeiro, e assim fiz. Cheguei lá com 650m, dei umas voltas e consegui subir a 800 mas não confiei na ascendente e voltei para o morrinho, fazer mais ladeira.

O Emi tinha, minutos antes, aterrado nessa aldeia e contactou-me por rádio perguntando se eu via alguém aterrado no monte; não via. Por ali andei, tendo descido até aos 450m - abaixo do cimo do montinho...-, durante meia hora, com pouca fé, pensando que devia era escolher um campo e aterrar por ali, até que apanhei algo mais consistente em que acreditei e que me levou de novo até dentro da nuvem aos 1400 m.

Daí em diante foi o voo clássico das primeiras horas da manhã em Patú: nuvens a marcar, boa deriva na térmica e boa velocidade na transição mas sempre aquela quase-angústia que os meus amigos parapentistas provavelmente não sentem de que, voando sempre abaixo dos 1500m, se o trajecto não fôr muito bem escolhido rapidamente posso encontrar-me a descer sem apelo nem agravo no meio de uma extensão infinda e densa de juremas, arbustos duros e muito ramificados de até 3 m de altura que cobrem muito mais de metade do chão daquela região, que não constituem, de todo, uma opção aceitável para uma asa delta aterrar.

Ao fim de 2 horas de voo tinha feito 50 km, ao fim de 3 horas 100 km, sempre abaixo dos 1500 m. É verdade que a média estava a subir mas, das nossas conversas e combinações dos dias anteriores, tínhamos estabelecido que para fazer um voo de mais de 400 km teríamos de ter pelo menos 200 km feitos ao meio-dia. Parecia óbvio que este não ia ser um desses dias, pelo menos para mim, que me tinha atrasado muito logo de início, com uma descolagem tardia, muito tempo sobrevoando a rampa e meia hora de espera em Rafael Godeiro.

A mão esquerda, que tinha quase a certeza de ter partida, doía-me, estava já um bocadinho farto das agruras do sertão, triste pelo acidente do Eusébio, consciente da previsão não ideal para os próximos dias, cheio de saudades da Vera. Pensei que este seria o meu último voo da temporada nordestina e decidi que continuaria mais umas horas, pelo menos para tentar fazer uma marca aceitável em termos de distância.

Ouvia esporadicamente o Eduardo e o Carlos no rádio e sabia que iam cerca de 50 km à minha frente, mais ou menos na minha rota, com mais um molho de parapentistas. O Eduardo deu-me algum alento, incitando-me a continuar.

Cheguei à barragem grande, o Castanhão, marca dos 110 km, onde consegui subir pela primeira vez nesse dia acima dos 1800 m. Logo a seguir vi um aeródromo e senti-me muito tentado a ir lá aterrar mas a área que sobrevoava tinha outras aterragens e eu estava suficientemente alto para me deixar ir, "de borla", pelo menos mais 20 km.

Nessa altura as térmicas já estavam boas e francas, coroadas por cúmulos bonitos que tornavam o voo fácil e aprazível. O vento já tinha diminuído dos 25 a 28 km/h das primeiras horas e os Flymaster indicavam agora, sempre, menos de 20. Finalmente ao meio dia ultrapassei os 2000 m de altitude mas estava apenas com 160 km feitos; não seria um dia brilhante mesmo que continuasse durante mais cinco horas.

Preguiçoso, deixei-me ir com o vento sem me esforçar até estar a 200 m do chão. Tinha por baixo uma fazenda com zonas livres, planas e verdes, pelo que abri o arnês e virei-me ao vento para aterrar. Nessa altura vejo vir dois urubús cerca de 100 m a barlavento e abaixo de mim, que em duas voltas chegaram à minha altura. Não consegui deixar de enrolar essa térmica, que em 10 minutos me subiu 1500 m, de novo até aos 2000.

Dirigi-me então a Quixeramobim, onde o Carlos e o Eduardo tinham anteriormente abortado um voo aos 200 e picos quilómetros. Nessa zona já quase não havia nuvens. Quando lá cheguei ainda tinha altitude para gastar e havia algumas aterragens para Oeste da cidade, pelo que me deixei ir voando, sem investir nas ascendentes que encontrava esporadicamente, decidido a ir procurar uma boa aterragem para terminar a campanha nordestina com um voo de mais de duzentos quilómetros.

Assim fiz, até à última aterragem com aspecto decente que, afinal, tinha um cabo eléctrico a atravessá-la... Voltei dois quilómetros para trás, até uma zona que me pareceu aceitável se bem que um pouco acidentada.

Como ainda havia algum vento consegui aterrar não muito depressa mas, como em todas as quatro aterragens que fiz nesta expedição, sem a asa na mão, dando uma bicada que não teve, desta vez, quaisquer consequências.

230 km em quase seis horas. Lento mas aceitável. Dei o OK no Spot, desliguei os instrumentos e desmontei a asa. Quando estava quase a acabar vejo chegar a minha recolha, o Valério, que me ajudou a carregar a asa para cima da pickup.

Aterrei às 13:30. O Valério chegou antes das 15:00. A viagem de volta - só ele e eu, que o Eduardo e o Carlos ainda estavam no ar para os seus melhores voos do ano, com 461 e 424 km, respectivamente, e o Emi tinha ficado perto da descolagem - durou as clássicas seis horas, pelo menos duas das quais em estradas de terra, tendo chegado a Patú e ao restaurante do Gordo às 21:00. 

Jantei com o Joca, voador de São Paulo que tinha chegado dois dias antes com outros dois asa deltistas e que ainda não tinha voado e voltei para a Pousada, para o merecido banho.

No dia seguinte preparei a tralha, arrumei a mala, embalei a asa e vim para Fortaleza, onde apanhei o avião da noite que me trouxe de volta a Lisboa onde estou a escrever estas linhas.

 

Tenho algumas considerações a fazer acerca desta expedição que me proporcionou aquele que foi o meu maior voo de sempre em quase 38 anos de voo livre.

Patú é um local excelente para fazer voos de distância, tanto em parapente como em asa delta, pela proximidade do Equador e a consequente verticalidade do Sol, a possibilidade de, em Outubro, se voar entre as 06:00 e as 18:00 horas, a frequência com que os cúmulos indiciadores de boas térmicas estão presentes do nascer ao pôr do Sol, a existência de aterragens aceitáveis pelo menos durante  a maior parte dos primeiros 400km de trajecto e, principalmente, o ventão, que concede, de graça, idealmente 20 a 30 km de distância por hora - o que, ao fim de 10 a 12 horas de voo se traduz em mais de 200 km "à borla".

Fazer 10 horas de voo nas condições típicas de Patú não é para todos, pelo calor que pode ser abrasador, o pó, o tecto baixo no início do voo, a existência de áreas de muito difícil aterragem, a inexistência de estradas em outras áreas, a dificuldade das recolhas, sempre muito demoradas, a dificuldade de transmissão telefónica / internet, só possível perto das vilas ou cidades. Por outro lado, se fazer 10 horas de voo em parapente, sentado numa selette de braços no ar, é difícil, fazê-lo pendurado num arnês de asa delta é muito mais difícil. E se os parapentes em algumas zonas têm dificuldade em encontrar um campinho ou uma estrada que lhes permita aterrar, para as asas delta - especialmente se rígidas, com mais de 45kg e 14m de envergadura - a coisa torna-se muito mais difícil. Ainda acerca da aterragem, o vento tende a diminuir ao longo do dia pelo que é normal que, tendo descolado no ventão, se aterre... sem vento, o que não nos facilita a tarefa. Dir-se-ía que então se deveria aterrar mais cedo mas, por outro lado, aterrar entre as 11:00 e as 15:00 é um suplício pelo calor abrasador e pelo Sol, sem sombra para onde fugir.

Pois, o lugar é óptimo e propício para grandes voos, mas saem-nos do pêlo. Não basta querer, nem só estar; é preciso algum sacrifício.

Aconteceu-me na aterragem do segundo voo, em que fiz 110 km e abortei o voo por considerar que o dia não permitiria fazer mais que a marca anterior de 400 km. O registo no XC Portugal está todo marado em termos das altitudes mas, às 11:00 da manhã, enrolei descendente para conseguir aterrar no campo enorme e plano que tinha escolhido do ar. Quando aterrei não tinha vento, pelo que ao fazer o flare final aterrei de papo e o nariz da asa caíu-me sobre a mão esquerda. Senti logo uma dor lancinante e a mão começou a inchar, o que não me impediu de desarmar a asa, sozinho. Quando estava quase a terminar chegou o Passarinho, o meu resgate desse dia, numa altura em que eu já me estava a sentir mal pelo calor insuportável. Melhorei à sombra da carrinha apesar de o ar condicionado se ter avariado nesse dia e recuperei finalmente perante uma cerveja - como sempre, naquelas paragens, "estupidamente gelada" - num posto de gasolina onde almoçámos. Acabámos por chegar a Patú às 20:00 horas (110km de voo = 6 horas de viagem de recolha...), a mão num trambolho e eu com a sensação de que estava partida. Não voei nos dias seguintes porque a previsão não estava excelente e porque as dores na mão mo impediam. (In)Conscientemente decidi não ir ao hospital: se a mão estivesse, como pensava, partida, depois de me fazerem o diagnóstico seria difícil negar que ma engessassem ou pusessem uma tala, inviabilizando qualquer hipótese de voo nos dezasseis dias que ainda me faltavam; se, pelo contrário, não estivesse partida, não ganharia nada em ir perder tempo para o hospital e sabia que o tratamento ideal seria repouso. Foi o que fiz durante alguns dias, juntamente com muito Brufen que tinha levado e pomadinha de Voltaren do Eusébio, tendo conseguido diminuir tanto as dores como o inchaço, o que me permitiu fazer mais dois voos até ao fim da expedição e, finalmente, confirmar em Lisboa o diagnóstico de que eu suspeitava desde essa aterragem no segundo dia de voo: mão partida...

 

Tenho de agradecer.

Primeiro que tudo ao Zé Silvestre, cuja permanente atenção, apesar de estar a quase 6000 km de distância, em Portugal, nos facilitou a vida, tanto em termos de condição e previsão meteorológica, como no seguimento dos voos no Flymaster e no Spot, como em contactos com as recolhas, como na situação do acidente do Eusébio: as suas acções e contactos, sempre "em cima da jogada", transmitiram-nos um conforto e uma sensação de segurança que de outro modo não teríamos tido.

Aos meus amigos parapentistas Eduardo Lagoa, Carlos Lopes e Eusébio Soares por voarem como voam, pela sua competência, determinação e capacidade no Voo Livre, por serem exemplos para as dezenas de parapentistas que passaram por Patú durante a nossa estadia, por liderarem, sempre, os gaggles de que faziam parte e por me incluirem na sua expedição. Indo com eles estamos sempre garantidos ! Um agradecimento especial ao Eusébio por, pelo menos em duas noites, ter ressonado baixinho, o que me permitiu dormir não muito mal, e, brincadeira à parte, por, no primeiro voo e quando eu, cansado, dorido e farto, quis aterrar aos 200 e aos 300km, me ter picado para cima, dizendo-me que "os 400 é já ali a seguir áqueles cúmulos". Se não fosse ele eu não teria entrado no Clube dos 400.

Ainda nos parapentistas, parabéns ao Emi, voador da nova geração, exemplo de preserverança e simpatia, que nunca desistiu e que, apesar da sua menor experiência, foi melhorando as suas marcas até a um voo notável de quase 240km.

À Flymaster na pessoa do Cristiano, a cara da empresa, e ao Francisco e ao Nuno, por quererem fazer, e fazerem, sempre mais e melhor com os seus instrumentos e por acreditarem em mim.

À Mandacarú - só lá soube que era o nome do cacto que existe por todo o sertão -, a empresa que tratou da nossa logística. Menciono o Juliano, o Shaolin e as respectivas mulheres Priscila e Ana, responsáveis por uma turma de condutores experientes e proficientes - Passarinho, Maturi, Valério, Lucas e outros - que nos deram a assistência necessária nas descolagens e que sempre nos proporcionaram recolhas tão eficientes quanto possível. A título de exemplo, nos meus quatro voos de 406, 110, 140 e 230 km, só no primeiro o Passarinho chegou cerca de duas horas depois de eu ter aterrado; nos outros três o resgate chegou sempre antes de eu acabar de desmontar a asa, situação notável especialmente se tivermos em conta a dificuldade nas comunicações e em estradas boas.

Ao Rubinaldo, dono da Pousada do Voo Livre, em Patú, e membro do executivo da cidade, pelo acompanhamento que deu aos voadores em geral e, particularmente, aos portugueses por quem, era óbvio, ele tem uma preferência especial e por ter sido o motor do melhoramento da descolagem que me tinha parecido, nos filmes que vira antes de ir, pouco própria para asa delta e que descobri, lá, ser umas das melhores e mais fáceis de onde já voei. Todas as manhãs ele estava na rampa filmando e fotografando os pilotos e as descolagens, que postava logo a seguir no FB, sempre interessado em melhorar as condições da nossa estadia e em satisfazer os nossos pedidos, desde as refeições aos transportes, passando pelos quartos.

Ao Zé Doido, ícone da rampa de Patú, pela simpatia, acompanhamento e ajuda - era ele que, à falta da Vera, me esticava as licras antes do voo e me segurava a quilha para a descolagem, além de ter mandado fazer para mim um martelinho que passei a transportar na asa e que facilita muito a desmontagem.

Ainda em Patú, ao serralheiro / voador de quem não me lembro o nome que me deu uns tubos com que melhorei as escadas onde transportava a asa, ao Victor, da Skina do Açaí, pela ajuda, ao Pedro Bala, cabeleireiro de Patú, também voador e passageiro de uma das tentativas do Carlos Lopes para fazer um voo grande em duplo, pelo esforço que fazia ao tentar falar uma espécie de português aspanholado que, pensava ele, nós entenderíamos mais facilmente que o seu brasileiro, a muitos outros voadores com quem privámos mais proximamente, nomeadamente à super-simpática equipa mexicana do Alex, Benjamin e Estevan, às feras brasileiras, merecidamente recordistas do Mundo, Rafael Saladini e Samuel Nascimento, e ao Olivier, simpático aventureiro, parapentista e velejador francês que nos acompanhou muitas vezes e com quem foi agradável conversar na sua língua materna, que tenho já muito enferrujada.

Cabe também uma menção honrosa - muito honrosa - e um agradecimento à TAP - sim, à TAP ! -, principalmente nas pessoas do António Ferreira, responsável da carga em Lisboa, e de um colega dele cujo nome não retive, em Fortaleza, que fizeram do bicho de sete cabeças que toda a gente, incluindo os voadores de rígidas de todo o Mundo, da fábrica da AIR ao Joca, passando por todos os ingleses, dizia que iria ser o transporte da asa, uma facilidade sem espinhas. Desmistifiquei, com a sua ajuda, a ideia de que as rígidas, por terem um comprimento mínimo de 5,2 m, não podem voar de avião comercial: podem pois, como prova a descrição que agora faço, o que abre novos e distantes horizontes aos pilotos de rígidas de todo o Mundo, pelo menos para os destinos servidos pela TAP.

E à Vera, por me aturar e fazer da minha uma vida tão boa.

PortugalRicardo Marques da Costa @ 2018-11-08 19:37:09 GMT Linguagem Traduzir   
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Caro Amigo,

Muitos parabéns pela marca do 400. Obrigado pelos relatos, continuas a ser um exemplo para toda a comunidade alada.

Espero que agora não deixes de procurar os 300 na Penisula Ibérica :)

Grande Abraço 

Paulo

PortugalPaulo Frade @ 2018-11-04 19:58:20 GMT Linguagem Traduzir   
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