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Chegámos, o Eduardo Lagoa (EL), o Carlos Lopes (CL), o Eusébio Soares (ES) e eu, a Fortaleza na noite de 9 de Outubro, o ES e eu por volta das 21:00 e o EL e o CL três horas mais tarde, num avião que parou em Cabo Verde.

Depois de passarmos, o ES e eu, a minha asa pela alfândega, procedimento que não teve, de todo, a dificuldade que eu antevia, esperámos mais uma hora que o Passarinho, a soldo da Mandacarú, a empresa que trataria da nossa logística, nos viesse buscar e a um parapentista francês, o Olivier.

Carregámos a asa, as malas e os parapentes e viemos por aí fora até Patú, mal sentados e apertados, durante 400km que fizemos em 7 (sete !) horas.

Meia hora depois de nós chegaram o EL e o CL, com fogo no rabo: mal pousámos as tralhas nos quartos, comemos rapidamente umas frutas de "cáfé dá máiã" e fomos para a descolagem, montar o material. Felizmente para mim estava um ventão sempre acima de 30km/h com rajadas de até 50 que, combinado com o cansaço da viagem de avião e de carro e com o quase nenhum sono que tínhamos conseguido fazer durante a viagem por estrada, dissuadiu os nossos amigos parapentistas de tentarem voar nesse dia. Desmontei a asa e viemos para baixo.

Acabámos por ir passar parte do dia a uma lagoa, tomar uns banhos gostosos e comer uns peixinhos que estavam super-bons, regados com as cervejas geladas que, já reparei, são apanágio deste país.

Fiquei, na Pousada do Voo Livre, no quarto com o Eusébio e deitámo-nos antes das 21:00, que o despertador iria tocar às 04:30. Pormenor curioso: as camas aqui só têm lençol de baixo, o de cima é desnecessário.

Alvorada às 04:30, pequeno-almoço às 05:00 com mais uma dúzia de parapentistas - eu sou, para já, o único asa-deltista das redondezas - entre os quais os craques Rafael Saladini e Samuel Nascimento (o Samuka), dois dos recordistas mundiais de distância em parapente, e muitos outros bons voadores aspirantes a recordistas, nomeadamente do Brasil, Polónia, República Checa, Alemanha, França, México e Portugal, claro.

Às 05:45 estávamos na descolagem, ampla e desafogada se bem que não muito inclinada, com vento de cerca de 30km/h. Todos os voadores montaram os seus equipamentos e eu, num cantinho resguardado, a minha asa, que suscitou a curiosidade de toda a gente por ser raro ver rígidas naquela descolagem.

Começaram as descolagens de parapente, turbulentas e radicais, por volta das 6:30 (no XC Portugal diz 07:30 mas todos os tempos estão, lá, com atraso de uma hora apesar de os variómetros estarem programados para UTC -3, que é a hora correcta). Dos "Portugas" foi primeiro o ES, depois o CL e finalmente o EL, com mais uma dúzia de outros pilotos. Por ali ficaram pendurados quase três quartos de hora até se deixarem derivar, todos juntos, para trás, com 400m sobre a descolagem.

Antes das 07:30 descolei eu, numa descolagem super-lisinha e sem qualquer dificuldade, com um ventão constante. Já não tinha trapos para me orientarem e o conselho tinha sido que esperasse uma nuvem, chegasse ao cloudbase e fosse derivando sempre com ela, sem transitar. Burro, teimoso e um bocadinho impressionado com tudo aquilo, depois de ir à frente do monte e de andar de um lado para o outro, dei duas ou três voltas a subir e a derivar como o caraças debaixo de uma nuvem que entretanto perdi, esbocei uma tentativa para voltar à parede para recomeçar o processo mas a asa quase não andava para a frente pelo que, com menos de 1000m ASL (altitudes, neste escrito, sempre ASL) e pouco mais de 300m acima da descolagem, apontei na direcção da rota programada - tínhamos estabelecido Piripiri, 505km a ONO, como meta para o dia (!!!) - e fugi, a mais de 80km/h / chão.

Rapidamente me vi às aranhas, a 550m (300 do chão), a pensar como era burro por não seguir os conselhos de quem sabe mais que eu e a escolher um campo bom para aterrar.

Tive sorte e cheirei uma térmica que me levou pouco acima dos 1000m (subi 500m e derivei 3km) e me permitiu começar a pensar que afinal talvez houvesse voo depois da merreca certa de um quarto de hora antes. Nesta altura o rádio funcionava bem e os nossos amigos iam 40 minutos à minha frente, ditando-me o percurso. O Passarinho avisou-me que o meu Spot não estava a transmitir porque eu só o tinha ligado, esquecendo-me de carregar no botão do "pé" que activa a transmissão dos sinais, o que rectifiquei imediatamente.

Na direcção do voo tinha uma extensão a perder de vista (a "vista" estendia-se 30 a 50km) de planície de matagal denso e baixo que eu já sabia serem as fatídicas juremas, arbustos duros e muito ramificados com até 3m de altura que cobrem mais de metade dos campos desta zona, com espaços aparentemente aterráveis, ainda mais com o ventão que se fazia sentir e que encurtaria a distância necessária para uma boa aterragem. Havia também várias lagoas, produto de um "inverno" aparentemente mais chuvoso que o costume neste sertão.

E lá fui voando cautelosamente, que estava escaldado da primeira má decisão de transitar sem apoio, esgotando cada pequena ascendente que encontrava, com um tecto que ia subindo lenta mas regularmente, com nuvens a indicar. Como de costume e ainda por cima porque estava a voar sozinho e num ambiente completamente desconhecido para mim, não me guiava tanto pelo aspecto do céu e das nuvens mas pelo aspecto do solo e das aterragens.

Tive apenas uma fase em que desci até aos 650m, com um campinho para aterrar debaixo de olho, mas consegui recuperar e passar a manter-me sempre pelo menos acima dos 1000m.

Às duas horas e meia de voo - eram 10:00 da manhã... - fiz os 100km, antes do Castanhão, uma barragem grande. Os tectos continuavam a subir, lentamente, nessa altura até aos 1500m; era engraçado e reconfortante constatar que em cada térmica subia mais 50 ou 100m que na anterior.

E o voo continuou, sempre sem ver outros voadores, às vezes ajudado por uns urubús ou carcarás, de aterragem / nuvem em aterragem / nuvem, numa combinação de rota cautelosa em que, com a subida do tecto e a existência regular de aterragens possíveis, o aspecto do céu foi tomando preponderância em termos de indicação de voo. Às tantas vi um parapente aparecer por trás de mim e seguir-me durante duas térmicas mas, mais rápido que ele, acabei por deixá-lo para trás. Já não fazia ideia por onde andavam os outros portugas mas tinha a sensação, pelo que ouvia no rádio e apesar de não conhecer os locais que eles mencionavam nem conseguir ver a página dos mapas nos Flymaster, que estavam pelo menos meia hora à minha frente e mais para a direita da minha rota.

Ia com 200km e quase 5 horas de voo. Este era o primeiro voo desde há mês e meio, pelo que o corpinho já pedia tréguas. Tinha mais quase três semanas de perspectivas de bons voos pela frente. Pensei que para primeiro dia já bastava pelo que, por alturas de Quixeramobim, 30 ou 40km a SO de Quixadá, ao descer a 700m, escolhi um campinho verde e dirigi-me a ele para aterrar. Por azar não consegui evitar um termicão que me apanhou e me elevou rapidamente a 1800m. "Olha, que se lixe, vou continuar mais um bocado", pensei resignado.

Nessa fase do voo havia outra barragem muito conspícua à frente que me permitiu, por rádio, referenciar os meus amigos que estavam 15 ou 20km à minha frente e à direita dela e da minha rota, que passava à esquerda dessa barragem. Ao chegar lá estive de novo abaixo dos 1000m mas deixei-me ir, que havia aterragens fáceis durante alguns quilómetros seguidos. Apanhei outro canhão que me levou mais 20km até aos 700m e ao limite dessa grande extensão aterrável.

Escolhi o campo, abri o arnês e pus-me em pé, com as pernas de fora ensaiando uns passos para desentorpecer, alinhei-me ao vento até ver um c... de um bando de urubús a enrolarem por ali acima na minha direcção, quase de elevador. Cacetadão para cima - era 1:20 da tarde, a aterragem não devia estar fácil -, tive de enrolar como eles... Esta térmica levou-me pela primeira vez em 6 horas acima dos 2000m mas veio com um bónus: à minha 01:00 hora consegui ver pela primeira vez um grupo de parapentes. Imaginei que seriam os tugas e dirigi-me a eles, tendo-os apanhado 15km depois. Eram de facto os meus três amigos e mais dois parapentistas que não reconheci. Infelizmente nessa altura o meu rádio não funcionava - pensei que seria a bateria que teria acabado - e não consegui vocalizar com eles a alegria de os ter encontrado ao fim de 250km e seis horas e meia de voo. Enrolei duas térmicas com eles, transitando a uma velocidade de quase perda, mas depois pensei que já estava muito cansado, que eles iriam certamente esgotar o dia enquanto houvesse Sol e que eu ia mas era descobrir um campinho bom para aterrar logo que fizesse os almejados 300km.

A rota deles era para uma zona montanhosa e com poucas aterragens e eu dirigi-me a uma cidade, Monsenhor Tabosa, onde faria os 300km e poderia aterrar. Constatei nessa altura que o meu rádio afinal funcionava, estava era desligado... Transmiti aos meus amigos o meu plano de terminar o voo ali e foi o Eusébio que me convenceu a continuar, que a partir das tais montanhas haveria aterragens por todo o lado, que o céu estava nessa altura bem montado e fácil, com tectos bastante mais altos, e que "os 400 é já ali"...

Esse seu paleio, a facilidade com que se subia até acima dos 2000m, a existência de aterragens e uma estrada que seguia recta a perder de vista na direcção certa convenceram-me a deixar-me ir em frente, de novo sozinho.

Faltavam duas horas e meia para o pôr do Sol, o ar estava tranquilo, as nuvens e as correspondentes ascendentes bem definidas, o glide em transição era bom... Lá fui indo, até fazer 380km e estar a 1400m de altura, a seguir a Nova Russas, já com aterragem escolhida. Aí começa um planalto que é 500m mais alto que o terreno que eu vinha sobrevoando e que é quase completamente coberto de vegetação densa, sem abertas. Mas apanhei outra boa térmica que me levou acima dos 3000 e, confesso, decidi arriscar ir para a frente mesmo sem aterragens evidentes, que isto de ter os 400km à mão de semear transtorna um homem...

A terra para onde me dirigi tinha um aeródromo orientado exactamente ao vento. Perguntei pelo rádio se poderia aterrar lá e a resposta foi positiva, que havia muita gente dos trapos que já lá tinha aterrado.

Mas havia um - grande ! - problema: se aterrasse no aeródromo, que distava 395km da descolagem em Patú, e como o XC Portugal dá prioridade à "distância livre" (medida entre a descolagem e a aterragem) sobre a "distância máxima" (medida entre os dois pontos mais afastados do voo), não ficaria com os 400km averbados... Parecia-me ver uma zona mais clara no meio da vegetação dez quilómetros para a frente e ainda estava altíssimo, pelo que decidi ir em frente, já agora...

Ansioso, fui olhando para os Flymaster a ver os 400.0km chegarem. E chegaram...

Depois concentrei-me na tal zona mais clara, para onde me dirigi e onde cheguei com 1300m. Pareceu-me suficiente - pudera, não havia mais nada para aterrar à volta...- pelo que larguei o paraquedas de aterragem para descer mais depressa e comecei a fazer oitos durante 10 minutos. Fiquei apreensivo ao constatar, quando me aproximei o suficiente, que o campo não era tão limpo como parecia. Virei-me ao vento na final, com a asa a avançar pouco de início mas depois, com o gradiente de vento e o facto de aquele terreno estar num local mais baixo, a avançar como se não houvesse vento de todo. Andei, andei, picado e a descer pouco, comi mais de metade do campo e, quando faltavam 50m para tocar no chão, vejo uma árvore grandita e frondosa à minha esquerda, outra igual 50m à direita - que eu tinha visto do alto e para evitar as quais tinha desenhado aquela linha de voo - e, "last but not least", um c...de uma p... de uma árvore raquítica com um caule da grossura de um braço com 3m de altura e sem folhas que, confesso, estava então a ver pela primeira vez.

Tive pouco tempo para pensar. Não quis desviar-me por correr o risco de bater nas árvores grandes e, optimista, apostei que o caule delgadito não impediria, por uma qualquer artimanha da física que favorece as pessoas simpáticas entre as quais tenho a mania de me incluir, a passagem da asa.

Ouvi um estoiro enorme, senti uma sacudidela violenta, assumi "the position" e dei por mim de cara no chão, cheio de terra e a pingar sangue. Levantei-me, vi que a asa tinha um montante dobrado, despi o arnês e a roupa, sacudi a areia e o sangue da cara e respirei fundo, contente por estar inteiro e a mexer tudo, por a asa não parecer muito mais danificada que pelo montante dobrado e, claro, por ter adquirido - à minha custa, é verdade - o passe para o selecto e restrito "Clube dos 400".

Nisto chega um miúdo de mota, o Lieo, a quem peço ajuda para substituir o fusível do montante antes de desmontar a asa. Dobrado em ângulo recto não saía, nem nenhum de nós tinha algo que cortasse a cordinha que une as metades do montante. O Lieo ofereceu-se para ir a casa, a 1km, buscar uma faca, o que fez. Trouxe o irmão, o Tói, e os dois ajudaram-me a trocar o fusível e a trazer a asa para perto da estrada de terra que bordejava o campo para a desmontar. Não parecia haver mais nada estragado, nem na asa nem na p... da arvorezita, essa incólume.

Desmontei rapidamente, que nestas latitudes o Sol não se pôe, cai a pique, dando lugar quase imediatamente à noite, até os miúdos se irem embora. Ao arrumar o arnês dei conta que não tinha o telefone, que ia montado num suporte na barra de controlo e que devia ter caído aquando do embate com a árvore. Munido de um frontal e de uma lanterna esquadrinhei o terreno entre a árvore e o lugar onde a asa ficou, meia dúzia de metros depois dela, e nada. Pensei que, afinal, a entrada no "Clube dos 400" me tinha saído carota, o preço de um iPhone X... Não desisti e, pensando que o suporte podia ter batido directamente na árvore, ficando virado para cima e fazendo de catapulta ao telefone, fui procurá-lo antes da árvore fatídica e... encontrei-o caído na areia, seis metros antes da árvore. Soprei-lhe para tirar a areia, agradeci a sorte e corri para a estrada interceptar um carro, o único que passou, que vinha por ali fora. Pedi-lhes se me levavam à vila mais próxima ou, pelo menos, onde houvesse sinal de telefone ou internet.

Uma dúzia de quilómetros depois, por estradas de terra, chegámos a Poranga. Por Whatsapp contactei o Silvestre, o anjo da guarda que, a seis mil quilómetros de distância, em Portugal, nos protege e orienta, contactando com a Mandacarú e organizando a recolha (que por terras de Vera Cruz tem o nome de "resgate"), que me disse que o Passarinho, minha recolha, estava a menos de uma hora de mim. Ofereci jantar - espetadas de boi, que é como aqui se chama ao que nós, na Tugalândia, designamos por "vaca", e baião de dois, "fêjão com árrôis" - ao gajo que me trouxe de carro até à vila e vinte minutos depois de termos começado a jantar passa o Passarinho no jipe com as escadas. Ofereci também jantar ao Passarinho, que entretanto a minha primeira boleia basou, e quando ele acabou de comer voltámos para trás buscar a asa.

Uma hora depois parámos em Croatá, onde estavam o Eduardo, o Carlos e o Eusébio, que tinham feito 412km, bebemos mais uma cerveja e fomos para Crateús, onde pernoitámos num "hotel".

No dia seguinte de manhã cedo arrancámos direitos a Patú, onde chegámos às 15:30, estafadinhos de todo.

E foi esta a história dos meus primeiros 400. Um bocadinho complicado, aguentar o acordar às 4:30 para estar na descolagem uma hora depois, o descolar antes das 08:00 da manhã, o calor, o pó, o ventão, o voar nove horas sobre terreno completamente desconhecido, o aterrar, mal, num buraco sem rede telefónica, o acabar de desmontar a asa de noite, o demorar 8 ou 9 horas para voltar para casa... É o que eu digo, coisa para homens. De barba rija... Eu, parece-me, sou muito menina...

Venham os 500 !

 

Nas fotografias:

1 - Zé Doido, ícone do voo livre de Patú, e a sua imprescindível ajuda na quilha;

2 - Descolagem tranquila;

3 - Sobre a serra de Patú, com a descolagem à direita;

4 - Serra de Patú.

 

PortugalRicardo Marques da Costa @ 2019-04-05 22:21:27 GMT Linguagem Traduzir   
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